UMA ESTRATÉGIA DA PSICOLOGIA CLÍNICA PARA PROMOVER A INCLUSÃO NA DOENÇA CELÍACA: O TRABALHO COM GRUPO
Aline Ribeiro Mayrink / Giovana Fagundes dos Santos
Associação dos Celíacos do Brasil – Seção Minas Gerais (ACELBRA/MG)
[email protected] / [email protected]
O desenvolvimento de ações inclusivas na sociedade requer um posicionamento crítico
que contemple o contexto em que estas se inserem. Ao propor trabalhos na área de
saúde, é preciso ter claros os objetivos de inclusão e quem são os “excluídos”. Segundo
Guareschi (1992), a origem da exclusão de determinado grupo está sempre na sua
relação com outros que compõem o meio onde vivem. Não se pode simplesmente rotular
algumas pessoas de “excluídos” e lidar com elas como se sua existência estivesse
desvinculada do contexto social. No caso da doença celíaca, seus portadores enfrentam
um grande desconhecimento da população em relação à existência da doença, o que
gera, de imediato, certo preconceito, acompanhado da escassez de recursos que
permitam lidar com tal situação. Os pacientes relatam a dificuldade de se inserirem nos
ambientes de escola e trabalho em função do peso do rótulo de uma doença
desconhecida e que requer um comportamento específico de restrições alimentares. Por
esse motivo, mostra-se clara a necessidade de se trabalhar não só com os pacientes,
isoladamente, nos consultórios médicos ou de psicologia, mas sim dentro das diversas
instituições, contribuindo para transformar o olhar da população em relação a essas
pessoas. As ACELBRAs (Associação dos Celíacos do Brasil) criadas nos diversos
estados atuam nesse sentido, mas suas ações ainda precisam ser ampliadas para que
diminua a exclusão sofrida pelos celíacos. Acreditamos que com esse olhar abrangente,
voltado para o que é excluído e para o que exclui, em médio prazo haverá resultados
consideráveis em termos de mudança de comportamento social, acarretando maior
integração dos celíacos na sociedade, bem como uma melhoria na sua qualidade de vida.
O presente artigo tem por objetivo relatar um trabalho da psicologia desenvolvido na
ACELBRA-MG com pessoas portadoras de doença celíaca. Pretende-se apontar os
efeitos da exclusão sofrida por estes pacientes, bem como discutir uma proposta de
intervenção com grupos a partir da psicologia clínica, com o objetivo de trabalhar o
impacto da doença nos seus aspectos subjetivos, interpessoais e sociais. Tal estratégia,
colocada em prática desde agosto de 2003, também parece estar contribuindo para a
inclusão social de tais pessoas, da forma como descreveremos no decorrer deste
trabalho.
Estamos muito habituados a pensar as práticas inclusivas voltadas para alguma
deficiência física e nos esquecemos de olhar, mais cuidadosamente, para portadores de
doenças crônicas que precisam do apoio contínuo da sociedade, a fim de levar à frente
seu tratamento. A doença celíaca ainda é bastante desconhecida, inclusive no meio
médico. Apesar de suas primeiras caracterizações datarem de 1950, quando seus
sintomas foram relacionados com a ingestão de glúten, atualmente grande parte da
população não sabe da sua existência, contribuindo para diversas práticas de exclusão.
A doença celíaca apresenta um caráter crônico e se identifica pela intolerância
permanente ao glúten – proteína presente em alguns cereais, tais como o trigo, a aveia, a
cevada, o centeio e em seus derivados. Provoca sérias lesões na mucosa do intestino
delgado, gerando uma redução na absorção dos nutrientes ingeridos. Alguns sintomas da
doença celíaca são: atraso no crescimento e desenvolvimento, irritabilidade, diarréia
crônica, distensão abdominal e anemia. Entretanto, a doença pode ocorrer também de
forma assintomática. A longo prazo, a doença celíaca, caso não seja tratada
adequadamente, pode aumentar o risco de aparecimento de linfoma do intestino delgado,
de carcinoma esofágico ou faríngeo, entre outros problemas. É uma doença de origem
genética e pode ocorrer com mais freqüência em associação com outras doenças como:
diabetes, síndrome de Down, doenças de fundo imunológico, doenças neurológicas,
psiquiátricas, etc. O diagnóstico é feito através de testes laboratoriais e biópsias do
intestino delgado – condição indispensável para o diagnóstico definitivo. O tratamento da
doença celíaca somente pode ser feito através da dieta totalmente isenta de glúten, que
deve ser seguida rigorosamente por toda a vida. (Jornal da ACELBRA-MG, nº 03,
Novembro de 2003; Arbelo, F. T. et all/2002).
O diagnóstico de doença celíaca, na maioria das vezes, vem após uma longa jornada por
diversos médicos e incertezas quanto à natureza do problema. A descoberta nem sempre
traz alívio, apesar de pôr fim à indefinição, já que as dificuldades enfrentadas pela pessoa
a partir do diagnóstico são inúmeras. Variam desde o estranhamento causado por algo
ainda tão desconhecido até as mudanças radicais nos hábitos de alimentação e de vida,
em todos os seus aspectos: emocional, biológico, social, financeiro, cognitivo, profissional,
e até mesmo espiritual.
O que, primeiramente, sobressai na doença celíaca é a grande restrição alimentar
imposta aos seus portadores, em caráter permanente. Especialmente tratando-se da
nossa cultura, onde a farinha de trigo faz parte da maioria dos alimentos, principalmente
dos industrializados, essa restrição se torna ainda maior. Além disso, a alimentação
transcende o simples ato de satisfazer uma necessidade fisiológica, revestindo-se de
significados múltiplos e envolvendo questões culturais, étnicas, religiosas, estéticas,
políticas, sexuais, etc. (Carneiro, 2003). Nesse sentido, os celíacos muitas vezes se vêem
impedidos de compartilhar momentos de convívio social ou familiar em função de suas
restrições alimentares. Em geral, estes, ou seus familiares, precisam preparar a maioria
de seus alimentos em casa, uma vez que quase todos os produtos industrializados
contêm glúten. E quando sai de casa para alguma ocasião social (que geralmente envolve
o ato de comer), além de não terem alimentos adequados à sua condição, passando por
situações de constrangimento, ainda são vistos como diferentes, de forma preconceituosa
e estigmatizante. A necessidade de um preparo diferenciado dos alimentos os coloca em
uma incômoda situação de dependência. Além disso, podemos citar a pouca
disponibilidade dos produtos preparados sem glúten e o seu alto preço, como um fator de
exclusão econômica ao qual os celíacos são submetidos.
Como podemos perceber, o diagnóstico de doença celíaca acarreta grandes impactos na
vida de uma pessoa, exigindo novas formas de adaptação. Mas esta só pode ser feita de
forma eficaz na medida em que a pessoa aceita e internaliza sua nova condição. Relatos
e depoimentos de celíacos e de seus familiares mostram que esta aceitação nem sempre
é tão fácil e tranqüila. Entre os impactos da doença celíaca encontram-se os efeitos
psicológicos e emocionais causados por um diagnóstico de doença crônica, e portanto
sem cura, e por uma imposição de dieta alimentar. Isso influencia a pessoa em todos os
ambientes onde ela transita e em todas as suas atividades. Segundo Fraiz, médico
homeopata, o predomínio de doenças crônicas na atualidade, em relação às infectocontagiosas, coloca o médico em uma situação de frustração, pois este percebe que não é mais um “curador” e sim um “cuidador”. Por causa da mentalidade vigente, de extrair o
mal e eliminar a doença do organismo, os portadores de doenças crônicas também se
frustram, pois querem ser curados de seus males. Ainda não se vê inserida em nossa
sociedade a noção de cuidado permanente com a pessoa como um todo, por uma melhor
qualidade de vida e não apenas a remissão dos sintomas.
Diante de tudo isso, faz-se necessário pensar em ações que visem a uma maior
integração social do portador de doença celíaca, garantindo-lhe suporte em diferentes
níveis, o que se traduz em um melhor controle da enfermidade e, conseqüentemente, em
melhores condições de vida. Algumas ações já vêm sendo desenvolvidas nesse sentido,
no contexto nacional, como, por exemplo, a criação de associações de celíacos. A
aprovação da lei que obriga as indústrias alimentícias a colocarem no rótulo dos produtos
a expressão “contém glúten” facilitou o dia-a-dia dos celíacos, embora haja
descumprimento em alguns casos. A busca de formas de divulgação para um
conhecimento maior acerca da doença, tanto para os pacientes como para a população
em geral, é de fundamental importância, pois ajuda a esclarecer objetivamente alguns
aspectos, diminuindo ansiedades, medos ou fantasias relacionadas a ela.
Vale ressaltar que todas essas questões são mais objetivas e sua resolução não elimina os efeitos psicológicos e subjetivos oriundos de outras formas de exclusão. Cuidar
apenas desse âmbito já se mostrou insuficiente, como mostram Arbelo et all.(2002) ao
trabalharem com o conceito de apoio social. Tal noção engloba tanto um apoio cognitivo,
relacionado ao fornecimento de informações conforme mencionado acima, como o apoio
afetivo-emocional e o material. Este se refere a serviços concretos e ações que garantam
o acesso a novos contatos e funções sociais, o que compreende políticas em saúde, o
desenvolvimento de leis e parcerias com empresas alimentícias, a manutenção de
vínculos por parte das ACELBRAs, tanto com os celíacos como com estas diversas
esferas e instituições. Outra função destas associações, relacionada ao apoio material e
também ao afetivo-emocional, é possibilitar encontros entre os celíacos, promovendo
contatos de forma a evitar que se sintam isolados e sozinhos em seu problema. Um
serviço que pretende auxiliar pessoas celíacas sem todas essas formas de suporte será,
no mínimo, incompleto, como aborda Saidón (1993) ao tratar da formação de redes
sociais na comunidade. Segundo ele, “pensar em rede facilita as ligações reconstrutivas
do tecido social” (p.205). Articulando diversas esferas sociais, de modo que todos se
sintam participantes pelo que acontece com o todo, promovem-se ações mais integradas,
evitando a manutenção da exclusão. Um tratamento bem-sucedido da doença celíaca
mantém correlação significativa com esse apoio mais amplo, multiprofissional, mas ainda
assim não é garantido por este, pois também depende diretamente de decisões e
condutas individuais.
Dentro deste contexto, a psicologia clínica pode oferecer sua contribuição, já que o
aspecto psicológico desempenha um importante papel na forma como cada pessoa reage
ao diagnóstico da doença celíaca, e ainda na forma como vai se posicionar diante do
tratamento. Na psicologia, diversos autores apontam a crescente utilização do trabalho
com grupos em instituições, por apresentar grandes vantagens em relação ao modelo
tradicional empregado nos consultórios de psicologia. Cardoso, Mayrink e Santos (2003)
ressaltam a importância dos grupos terapêuticos como auxílio no tratamento de diabetes
e hipertensão arterial em centros de saúde pública, exemplificando essa forma de
intervenção. Segundo Yalom e Vinogradov (1992), existem fatores terapêuticos presentes
no contexto grupal que favorecem a troca de experiências, o autoconhecimento e a busca
por melhor qualidade de vida no aspecto existencial, ampliando as formas de lidar com as
situações vividas. Arbelo et all (2002) afirmam ainda que também na área médica a
instrução em grupos é mais efetiva do que a individual, possibilitando maior aprendizagem
e o espelhamento em pacientes com bom controle dietético e boa saúde. Por esses
motivos, o trabalho clínico com grupos tem sido cada vez mais utilizado dentro de
diversas instituições.
A ACELBRA-MG, através do contato com tais teorias e trabalhos com grupos, e em face
da necessidade de promover um suporte multiprofissional a seus associados, formulou
uma demanda por uma abordagem psicológica na instituição. Esta partiu de uma visão de
homem enquanto totalidade e multiplicidade, conjugada à noção de saúde conforme
concebida pela Organização Mundial de Saúde, como um estado de bem-estar e
qualidade de vida, e não apenas como ausência de doenças. Observou-se grande
necessidade de fornecer um espaço de escuta terapêutica para os associados, que
buscavam na diretora da ACELBRA um suporte para o impacto do diagnóstico da doença
celíaca. Essas pessoas, na maioria, vinham de um longo período de incertezas, exames
delicados, passagem por vários médicos e diagnósticos, sem encontrar resposta ou
remissão dos sintomas. Após tal trajetória, a descoberta da doença e da forma de
tratamento causava um turbilhão emocional, que muitas vezes não podia ser trabalhado e
elaborado adequadamente. Surgiu a hipótese de que uma abordagem psicológica
pudesse contribuir com a aceitação do diagnóstico e com uma melhor adesão ao
tratamento e reinserção no mundo.
Além disso, observou-se que o intenso trabalho informativo, desempenhado pela
instituição, não se mostrava suficiente para seus associados de fato aderirem ao
tratamento. Apesar do grande número de boletins informativos, publicações e encontros
anuais, o comportamento de tais pessoas não se modificava. Percebeu-se que só a
compreensão cognitiva de algo não é suficiente para gerar mudanças efetivas no modo
de ser das pessoas.
Diante de tal situação, formalizou-se um projeto de assistência psicológica em grupos aos
celíacos e seus familiares. Houve a formação de uma equipe de psicólogos, assumindo o
trabalho em caráter voluntário. Com essa proposta, espera-se proporcionar um suporte
psicológico mediante o qual a pessoa possa, através da troca de experiências, rever e
ressignificar seu posicionamento diante da vida, seus hábitos, necessidades, limitações e
possibilidades. Espera-se auxiliar também os profissionais que trabalham com esse
público, no sentido de melhorar a compreensão do celíaco, suas dificuldades e reações
em relação à doença. Somente assim, uma assistência de qualidade pode ser prestada
de fato, contemplando-se a multiplicidade do ser humano. Essa perspectiva clínica
adquire importância especial, uma vez que as ações sociais ou informativas isoladamente
são incapazes de redirecionar o posicionamento pessoal diante da realidade.
Alguns resultados já podem ser observados a partir do momento em que a proposta foi
colocada em prática. Com o contato estabelecido nos grupos, emergiram vários temas e
questões de grande relevância que nos instigam a reflexões. Constatou-se que o impacto
do diagnóstico ainda ocorre intensamente, mesmo após longos anos de convivência com
a doença. As pessoas relatam grande dor, devido às dificuldades sofridas, muitas delas já
mencionadas neste trabalho. A questão da diferença, e de se sentir diferente e excluído é
um ponto fundamental, relatado por todos. É interessante refletir sobre o movimento
presente na sociedade de afastar o diferente, excluindo aquele que foge do ideal de
igualdade e homogeneidade. Essas questões, levantadas pelos participantes durante os
encontros com os grupos, mostram, através de dados concretos, que os celíacos
representam uma categoria de excluídos em nosso meio. O sentimento de pertença a
uma associação e, dentro dela, a um grupo específico ajuda a desenvolver estratégias de
enfrentamento da doença e dos problemas sociais relacionados a ela. Existe a
necessidade muito concreta dos participantes dos grupos de produzirem ações (ou de
que estas sejam produzidas) na sociedade para facilitar a vida dos celíacos, contribuindo
para diminuir seu sofrimento.
Apesar de recente, o trabalho desenvolvido na ACELBRA-MG aponta vários caminhos de
atuação e pesquisa. A riqueza dos depoimentos e experiências compartilhadas nos
grupos ajuda a compreender o universo da doença celíaca e suas repercussões em níveis
sociais e psicológicos, muito além do aspecto biológico. Isso ressalta a importância do
trabalho multiprofissional e da atuação em redes para contribuir com uma melhora na
qualidade de vida dessas pessoas, bem como de outros portadores de doenças crônicas.
Os efeitos desse tipo de assistência em grupos reforçam o contexto grupal como um
espaço que favorece o fortalecimento da auto-estima e a diminuição do sentimento de
inadequação, na medida em que se percebem outras pessoas passando pelo mesmo
problema, havendo ainda a instilação de esperança quanto às possibilidades de lidar com
a doença, entre outros. Além disso, o espaço grupal fornece dados que permitem a
articulação entre o trabalho prático e o teórico. Nesse sentido, a produção de
conhecimento contribui para haver uma mudança na mentalidade vigente, constituindo
mais um fator para combater as diversas formas de exclusão.
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